Partindo de categorias estipuladas por Genette em seus estudos narratológicos literários, os narratologistas do cinema estabeleceram quais as possíveis relações entre história (eventos narrados) e narrativa (maneira pela qual são narrados). São relações que distribuem principalmente entre quatro modalidades: ordem, duração, freqüência e modo.
A relação de ordem consiste nas diferenças entre o desenvolvimento da narrativa e da história , tocando na questão da seqüência linear em contraposição à não-linear. A narrativa pode respeitar a seqüencialidade normal dos supostos eventos ‘reais’, procedendo do início até o meio e o fim, ou ela pode embaralhar essa seqüencialidade. Essa não linearidade se dá na presença de procedimentos de anacronia, como as analepses (‘flashbacks’) e as prolepses (‘flashforwards’).
É interessante refletir sobre a idéia vigente da seqüencialidade normal como sendo a cronológica. Diz-se que os métodos anacarônicos fazem com que a narrativa não apresente os acontecimentos na ordem em que supostamente deveriam acontecer. Essa concepção faz mais sentido dentro da lógica de um filme clássico-narrativo, que tem nas ações dos personagens as referências para o desenvolvimento temporal. Filmes que lidam com a temporalidade da memória, do fluxo de pensamento ou dos sentimentos costumam embaralhar e repetir as ações, para acompanhar uma lógica interna ao personagem. Portanto, não é que desrespeitem a ordem normal dos eventos, mas seguem uma outra lógica de tempo.
“O ano passado em Marienbad”, de Alain Resnais. Narrativa que acompanha o fluxo de pensamentos, impressões e lembranças do protagonista.
A duração diz respeito à relação entre a suposta duração da ação diegética e o tempo do discurso , no caso do filme, o ‘tempo de projeção’. Essa relação define o ritmo da narração. Pode-se considerar a elipse como sendo a velocidade máxima que essa relação pode alcançar e a chamada ‘pausa descritiva’ – espécie de suspensão do tempo da história – como a velocidade mínima. Normalmente, o tempo do discurso é menor do que o tempo da história.
“Notting Hill”, de Roger Michell. Seqüência sem cortes, mas que funciona como uma sucessão de elipses para indicar a passagem dos meses.
A freqüência se refere à relação entre quantas vezes um evento ocorre na história e quantas vezes ele é narrado. Cinco variantes dessa relação podem ser identificadas. A primeira seria a narração singulativa, em que um único evento é contado uma única vez. A segunda seria a narração repetitiva, em que um evento é relatado muitas vezes em narrações multi-perspectivas. A terceira seria a narração iterativa, em que um evento que ocorreu diversas vezes é relatado uma vez. Essa variante se assemelha ao imperfeito do romance, o tempo da repetição habitual. Uma quarta variante seria um evento que ocorreu diversas vezes sendo narrado diversas vezes, o que Robert Stam chama de narração homóloga. Por fim, a quinta variante seria a narração cumulativa, em que um único evento é gradualmente detalhado através de memórias repentinas de um personagem, mostradas ao longo do filme.
Finalmente, a relação de modo se refere ao ponto de vista que ‘guia’ os acontecimentos durante o filme. Essa relação se desdobra no fenômeno de focalização. O fenômeno de focalização tem sua origem nas teorias narratológicas literárias, mas também pode ser aplicado ao cinema. A focalização pode ser de seis tipos:
Focalização interna fixa: instância narrativa acompanha um único personagem; a narrativa, portanto, se dá a partir dele, o espectador só vivencia o que ele também vivencia.
Focalização interna variável: instância narrativa passa de um personagem a outro; a narrativa se desenrola tendo vários personagens como referência.
Focalização interna múltipla: um mesmo evento é narrado sob pontos de vista de personagens variados.
Em todos os casos de focalização interna, pode haver uso da câmera subjetiva, assumindo o ponto de vista do personagem de forma explícita (plano ponto de vista: o olhar da câmera, ou seja, do espectador, coincide com o olhar do personagem).
Focalização Externa: A instância narrativa se dissocia dos personagens e eventos, como se eles fossem apenas observados ‘friamente’, sem maiores expressões de pensamentos e sentimentos.
Focalização Zero: ‘Equivale” ao narrador onisciente do romance. A instância narrativa sabe sobre os personagens e fornece essas informações para o espectador, sem que os primeiros as explicitem de alguma forma. O discurso indireto livre pode ser encarado como uma focalização zero, pois a instância narrativa ‘atravessa a mente do personagem’, o fluxo de consciência é explicitado de alguma forma pela narrativa.
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